INTRODUÇÃO
O referencial teórico utilizado neste artigo para entender os determinantes da formação em Psicopedagogia é o construcionismo social.
A formação do terapeuta psicopedagogo é de enorme importância, a fim de ampliar gradativamente suas competências, pois a cada dia que passa constatamos que é por um deslize da formação do psicopedagogo iniciante que muitos casos "se perdem", ou seja, o cliente (a partir da família) abandona a terapia psicopedagógica.
Um dos equívocos que o profissional recém saído de um curso de formação em Psicopedagogia comete é conversar com a família do sujeito indicado para o atendimento psicopedagógico, por meio de uma linguagem demasiadamente técnica, por expressões extraídas das abordagens teóricas estudadas recentemente, não propiciando uma comunicação satisfatória entre as partes envolvidas. Com isto não quero dizer que não podemos nos apoiar nos estudos feitos em um referencial teórico que justifique nossa hipótese, para desenvolvermos a conversa com a família que está buscando esclarecimentos, porém esta deve ser de maneira clara e despida de rebuscamentos, para que ela tenha mais possibilidades de interagir nessa conversa.
Desta forma, o que precisamos priorizar nestas entrevistas, segundo o referencial citado, é a "conversação" que se estabelece entre as partes envolvidas para compartilharmos o conhecimento que ambas as partes possuem sobre a criança ou adolescente em questão, uma vez que, nesta relação, como em uma moeda, temos a seguinte configuração: de um lado, nós, enquanto especialistas em Psicopedagogia, um profissional que estudou e estuda sobre os aspectos envolvidos na aprendizagem e seus distúrbios e, de outro, a família, que é a especialista sobre o conhecimento de sua história, de suas expectativas, de suas tramas e segredos em relação a seu(sua) filho(a), conforme nos mostra Anderson e Goolishian1. Portanto, nesta situação, não podemos pensar que alguém sabe mais, mas que há dois níveis de "saberes" imprescindíveis para que esta terapia tenha um bom desenvolvimento.
Neste sentido, é que ressalto dois aspectos na necessidade do contínuo processo de formação deste profissional: que ele busque não apenas aprofundar seus conhecimentos teóricos e técnicos, mas também que aprimore a "arte de conversar", para poder ampliar cada vez mais seus recursos de escuta e entendimento sobre seu cliente, compreendê-lo e ajudá-lo a defrontar-se com o "não dito", isto é, com a mensagem subliminar da conversa - indício valioso nos espaços terapêuticos.
Ao mencionarmos a conversação, estamos nos referindo ao instrumento para a construção de significado, ou melhor dizendo, a linguagem dá ordem e significado à nossa forma de viver. Portanto, como sugere Brun e Rapizo2, a conversa terapêutica possibilita que o outro atribua significação aos eventos e às pessoas que o circundam.
O "NÃO DITO"...
Entretanto, muitas vezes, são as coisas não ditas que homeostaticamente mantêm um determinado funcionamento, uma dinâmica familiar, pois fazem parte de um segredo familiar, em outras, são realmente desconhecidas pelo sujeito e o nosso papel é ajudá-lo a perceber e se apropriar deste conhecimento.
Reproduzindo o modelo familiar, a criança no papel de aluno também não diz algumas coisas a seus professores sobre a intransigência de seus pais, como às vezes os filhos não contam a seus pais sobre notas baixas, advertências disciplinares, enfim sobre a vida escolar, mantendo o "jeito de funcionar da família". Diante destas situações, o psicopedagogo tem como função estimular a desconstrução destes "não ditos", a fim de ampliar o espaço de aprendizagem.
Portanto, quando nos referimos à formação continuada, pensamos neste investimento ininterrupto, não apenas no aprofundamento teórico, como também no desenvolvimento de habilidades para o trabalho terapêutico. Dentre estas habilidades podemos destacar algumas, tais como:
• habilidade de ouvir como algo extremamente útil, tanto nas sessões que temos com os pais, como também com o cliente, pois tendemos a agir de maneira a dar opiniões ou emitir pareceres, antes mesmo de nosso interlocutor nos solicitar. A escuta é algo muito valioso, porque nesse momento além de ampliarmos os elementos que nos permitem conhecer melhor este sujeito, é quando ele próprio tem oportunidade de "se ouvir";Devemos cuidar para não nos paralisarmos diante de algumas "falas", isto é, tomarmos como pessoal alguma informação apresentada, e, a partir destas, criarmos conjecturas que nem sempre condizem com a realidade, por exemplo, diante do comentário de uma mãe: "Estou preocupada, pois meu filho foi mal novamente na prova de português", posso por em dúvida minha atuação profissional questionando "Será que esta mãe não está gostando do meu trabalho?" ou "Será que ela não confia na capacidade de seu filho?"
• habilidade de se surpreender com o novo, com as expressões, com a história de nosso cliente, com sua capacidade de transformar suas experiências sofridas em novas aprendizagens, com a nossa própria capacidade de perceber novos caminhos a serem percorridos junto com ele;
• habilidade de perguntar, pois é perguntando que ampliamos o nosso conhecimento sobre as possibilidades de transformações em nosso cliente, assim como seus próprios horizontes, que ao iniciar um trabalho interventivo, em geral, é bastante reduzido. Neste momento, as informações são mais periféricas e necessitam ser significadas, talvez articular novos nexos associativos, que levarão a uma reorganização do padrão familiar, em relação ao sintoma de uma aprendizagem disfuncional;
• habilidade de recomeçar um caminho, quando percebemos que o caminho anterior se esgotou ou não é o mais adequado para transformarmos o conflito em questão. Recomeçar um diálogo, que nos abre novas perspectivas construcionistas, recomeçar novas narrativas, que possam organizar de forma diferente algum problema ou crenças que estejam sendo vivenciados.
Conjecturas deste tipo, características de um ciclo vicioso, me ajudam apenas a subir a "escada das inferências"3 e, ao chegar ao topo da escada, estarei planejando algo, baseado em uma imagem moldada segundo essa inferência, provavelmente para atacar esta mãe, dizendo que talvez isto se deve às faltas dele ao atendimento, etc. No entanto, talvez a mãe pretendesse apenas compartilhar comigo sua angústia em relação ao baixo aproveitamento de seu filho nesta matéria, ou talvez sua própria incompetência para ajudá-lo na mesma.
Nestas circunstâncias, sugiro que façamos questões do tipo "O que você está querendo contar para mim, com esta informação?" ou "O que você sente diante deste resultado?", pois sendo essas questões de natureza reflexiva, além de facilitar a conversação, geram espaços de comunicação.
Na verdade, acreditamos que os sistemas sociais (família, escola) devem constituir-se em redes de comunicação, as quais se distinguem "em" e "pela" linguagem. Ao falarmos em linguagem, nos referimos ao significado que é atribuído pelo cliente ao contextualmente relevante. Desta forma, um trabalho terapêutico deve ser compreendido como algo mais que simples sistemas processadores de informação, mas como um processo de criação de realidades intersubjetivas compartilhadas.
Nossa proposta na Psicopedagogia é legitimar o pensar e, desta forma, provocar uma transformação na identidade do sujeito. Esta meta inclui os pais, pois o que se percebe é que, geralmente, os pais de sujeitos com dificuldades de aprendizagem apresentam certa inabilidade em perceber suas próprias contradições na relação com seu (sua) filho (a).
Apoiada em Brun4, podemos dizer que o terapeuta (psicopedagogo) deve trabalhar em dois níveis simultâneos:
• procurar entender como a família construiu e constrói sua "história", como é sua lógica particular, que em última análise vai revelar como a família lida com o processo de incorporar-expulsar informações (modalidade de aprendizagem);No contexto psicopedagógico, precisamos sistematizar melhor o uso das perguntas para que possamos otimizar a visão contextual e a leitura sistêmica de nosso cliente dentro de uma dinâmica familiar.
• ao conhecer essa lógica, fazer intervenções ou perguntas, visando a ativar núcleos de informações periféricas. Os elementos da descrição que o terapeuta faz do padrão familiar e, que servem de base para suas intervenções, procuram corresponder aos elementos da descrição da família e aos padrões por ela demonstrados a ele, nas sessões. Por outro lado, a nossa descrição precisa partir de um referencial diferente para que a família possa receber a notícia de uma diferença, como uma troca perceptiva, que promova mudança nos padrões familiares.
Por esta razão, enfatizamos a importância das perguntas, porque, segundo Karl Tomm5, estas representam um convite mais forte para que o cliente se engaje na conversa e sinta-se desafiado a pensar sobre suas dificuldades. Esperamos desenvolver a habilidade de enxergar um "bom momento" ou uma "abertura" na conversa para influenciar as percepções ou crenças da família, muito embora o cliente responda de acordo com a compreensão que possui. Temos observado em nossa prática clínica que a pergunta pode constituir-se em intervenções terapêuticas.
Nossa tarefa fundamental é trazer as suposições e atitudes tácitas à superfície, para que as pessoas possam explorar e falar de diferenças e mal entendidos sem se defender, afinal, como nos diz Tom Andersen6, "a linguagem não é inocente". Em meus encontros com os clientes, tenho optado (ainda numa perspectiva de Andersen) por "seguir o cliente", escutando-o e dando atenção à maneira como as palavras são proferidas, até porque "a pessoa que fala é ela própria afetada pelas palavras quando elas chegam aos seus ouvidos".
OS DIFERENTES MOMENTOS DE UM ATENDIMENTO CLÍNICO
Vamos aqui dar destaque a um dos campos de atuação da Psicopedagogia, que é o atendimento clínico. Neste ponto quero destacar os diferentes momentos que venho observando no desenrolar de um atendimento psicopedagógico no espaço clínico. Tais considerações resultam das observações, estudos e reflexões que realizo no cotidiano de minha atuação profissional.
Eles podem acontecer de forma seqüencial ou até mesmo, em algumas situações, de forma simultânea.
Considero o atendimento psicopedagógico clínico norteado pelo sistema narrativo que se estabelece entre terapeuta e cliente. Os meandros da linguagem e da conversação representam nosso principal instrumento terapêutico. Quando uma criança ou adolescente é encaminhado para um trabalho psicopedagógico, e, a fim de que haja a necessária interação entre o contexto familiar e clínico, devemos "incluir" a família no circulo narrativo.
Como me referi inicialmente, no trabalho que realizo percebo que há alguns momentos bem marcados em seu desenvolvimento: o primeiro deles é aquele em que se dá a formação do vínculo. Esse período começa desde o contato telefônico feito pela família, quando é formalizada uma queixa, que se estende até a entrevista feita com a mesma no consultório, quando se constrói a anamnese e a queixa é mais bem explicitada. Isto feito, recebemos o sujeito portador da queixa de aprendizagem para procedermos à avaliação, como meio de lhe conhecermos melhor em suas potencialidades e possíveis limites. Ao terminarmos tal procedimento, encerramos o diagnóstico psicopedagógico com a devolutiva aos pais e, na seqüência, é iniciada a intervenção, que tem como meta estimular a criança ou o adolescente em relação àquilo que está sendo considerado seu(s) déficit(s) e potencializarmos seus valores, suas habilidades. Durante esta etapa, o vínculo com este sujeito, bem como com a família, passa a se estabelecer.
O segundo momento passa a se delinear quando "nosso" sujeito começa a entrar em contato com seus limites e potencialidades, identificando-os ainda que às vezes os rejeite ou os negue, ou como diria Piaget, tornando-os observáveis. É um período de oscilações que deve ser alternado com contatos familiares, nos quais o sujeito deve ser incluído, para que possamos trabalhar as mudanças que começam a acontecer não apenas em seu processo terapêutico, mas também dentro da dinâmica familiar, que geralmente se altera e, então, as relações passam por transformações. É um período que pode se prolongar, dependendo do nível de tensão existente neste contexto.
No terceiro momento passam a se estabelecer as construções cognitivas e afetivas, já que na etapa anterior da intervenção pode-se construir um estímulo mais efetivo da cognição deste sujeito e, neste estágio, já mostra uma forma mais inteligente, mais ágil de entrar em relação com o mundo, possibilitando resgatar sua auto-estima e a maior confiança diante de novas conquistas, ou seja, maior interesse por aprender.
Temos mais uma etapa pela frente, que é o momento das elaborações em torno das descobertas e construções feitas até então: se conseguimos evoluir no estágio anterior, este momento é bastante gratificante, pois o sujeito passa a atribuir um novo sentido não somente aos potenciais que vem constatando em sua terapia, mas também aos limites que percebe existirem, mas que começa a aprender a conviver com eles ou superá-los.
Concordamos com Anderson e Goolishian1, quando afirmam que "o terapeuta é um artista da conversação", pois sua meta é a transformação da maneira como o sujeito se relaciona com o fenômeno da aprendizagem (sua modalidade de aprendizagem), o que é feito por meio de perguntas conversacionais, a ser exercitado pelo profissional, que deve partir de uma posição do "não saber". Com este recurso, nosso intuito é conferir um sentido e, se possível, uma organização ao contexto de aprendizagem desse sujeito.
O instrumento que irá nos nortear por estas etapas do processo terapêutico, como já citamos anteriormente, é a conversação existente nas sessões, ou se preferirmos, o contexto terapêutico pode ser entendido como um sistema lingüístico onde a narrativa se constrói entre terapeuta e sujeito (paciente), a fim de que este possa encontrar novas (ou diferentes) formas de se relacionar com sua realidade (escolar ou familiar).
Comungo com Brun4, quando esta nos diz "abandonar a crença na possibilidade de se acessar a uma realidade sem parênteses, abrir mão da idéia de objetividade, dar-se conta de que a realidade inevitavelmente é descrita por alguém que, na sua descrição, não pode fazê-lo sem atingi-la com sua subjetividade - tudo isso correspondeu a uma mudança de paradigma que trouxe consigo alterações significativas na minha forma de trabalhar".
CONVERSANDO COM O CLIENTE...
Vou relatar o atendimento que fiz a Fernando, que chegou a mim no mês de junho de 2005. Recebi o telefonema do pai querendo marcar uma entrevista, já que havia recebido a indicação de meu nome no colégio em que seu filho estuda. Como de hábito, propus que a primeira entrevista acontecesse com o casal (pais), para em seguida eu proceder à avaliação psicopedagógica com Fernando, que freqüenta uma escola tradicional, com reconhecida exigência em relação à produção de seus alunos.
No primeiro encontro com os pais, procuro fazer a anamnese do caso e tento levantar o motivo da consulta. Este garoto estava com 15 anos, cursando o 1º ano de Ensino Médio. Sua história escolar mostra que freqüentou a mesma escola do maternal até a 7ª série, uma escola em que sempre apresentou algumas dificuldades com escrita e leitura, mas a instituição nunca fez nenhum encaminhamento.
Segundo o pai, o filho sempre "andou no 4º quarto da turma"(sic), isto é, um rendimento abaixo da média. A mãe acha que impediu um maior desenvolvimento acadêmico dos filhos, porque ao escolher a primeira escola, optou por uma escola bem perto de casa, sem levar em conta os aspectos pedagógicos.
Ao concluir a 7ª série, suas irmãs mais velhas saíram desta escola por terem finalizado um ciclo de seus estudos. Com a saída das irmãs, Fernando não quis permanecer na mesma escola e mudou para outra com "menos exigência" (no entendimento dos pais), onde conseguia se manter no "meio da turma", mas em contrapartida não teve boa adaptação com os colegas. Nesta época, estava um pouco acima do peso, o que o deixava mais retraído e, então, interagia menos com os colegas, por inibição.
Concluída a 8ª série, e com problemas de adaptação, novamente Fernando muda de escola. Desta vez, passa a estudar na mesma escola que o pai estudara e que, naquela época, os primos freqüentavam.
Na descrição da mãe, após esta mudança, Fernando está mais social, anda sozinho de ônibus, mas ainda é muito dispersivo. Mesmo assim, os pais percebem seu interesse, pois muitas vezes pedia ajuda nas lições, ao contrário de antes. No primeiro bimestre, teve bons resultados em matemática e física.
Na opinião da mãe "não é muito chegado ao social"(sic), está um pouco gordinho (de 5 a 6 anos para cá), come bastante e não faz nenhuma atividade física. No ano passado, foi ao endocrinologista e em função do tratamento emagreceu um pouco. Recentemente, uma das irmãs o levou à academia para fazer exercícios. Os irmãos são bem unidos.
A queixa da escola, manifesta pela professora titular que responde pela classe de Fernando, é de que ele deve ter "um problema de ordem organizacional para estudar". Afirma que ele está bem entrosado com o grupo, a ponto de passar as tardes na escola, para estudar com os outros meninos.
Na entrevista de devolutiva aos pais, estes comentaram que Fernando não falava sobre o que fazia no consultório no período em que estava realizando o diagnóstico comigo, por esta razão, estavam curiosos em saber minha posição em relação às dificuldades de Fernando. Relatei-lhes que Fernando não apresentava dificuldades significativas para a abstração e sim para a elaboração de texto, bem como para apreender as idéias principais de um texto.
Durante esta entrevista, e, estabelecido o contrato de trabalho, o pai considerou importante fazer o relato de um episódio ocorrido entre o casal, na época em que Fernando tinha 10 anos. Contou sobre um sério desentendimento entre o casal, com uma grave agressão física e, posteriormente, com separação.
Neste ponto, comecei a refletir em minha prática psicopedagógica, na forma em que atuo com meus clientes por meio de tarefas, ou seja, de um projeto de maquete, confecção de uma máscara, a leitura de um texto, o desenho de um sonho, etc. Nesses momentos, me utilizo da conversação como um grande aliado do terapeuta, pois enquanto as atividades se desenvolvem, a conversa acontece, o que permite que o sujeito em terapia "se escute" e nós possamos levantar algumas hipóteses ou até mesmo alguns questionamentos junto com ele. É desta forma que passamos da 1ª para a 2ª etapa.
Foi o que ocorreu no atendimento de Fernando, podíamos conversar enquanto eu via seu fichário que era bem organizado, letra legível, mas, às vezes, com pouco capricho e, em certos dias, a ausência de algumas tarefas. Acabou relatando que sua maior dificuldade estava localizada na leitura, que não era fluente, e na elaboração de textos. Propus-lhe, então, a elaboração de alguns textos, por exemplo:
• Escolher um personagem para escrever uma página de seu diário. Os personagens propostos foram: Einstein, Airton Senna, Ronaldinho e Lula. Ele escolheu ? Ronaldinho;Foi nessa atividade, que notei que lhe faltavam elementos ou então alguma coisa difícil de ser mencionada. Tive a idéia de propor-lhe a confecção do genograma (Anexo 3) de sua família. O que eu não contava era que sua família materna fosse tão grande!!! Foram algumas sessões para a elaboração deste trabalho, numa delas precisamos pedir a ajuda de sua mãe em um de nossos encontros, o que foi muito significativo para Fernando.
• Um fato ocorrido na infância que estivesse guardado em sua lembrança (Anexo 1);
• Um desenho, com o texto correspondente, que falava de um acontecimento absurdo;
• Criação de uma fábula;
• Elaboração da autobiografia (Anexo 2);
Concordo com as idéias de Anderson e Goolishian1 de que os sistemas humanos são geradores de linguagem e, simultaneamente, geradores de sentido; o sentido e o entendimento são construídos socialmente; qualquer sistema em terapia é formado dialogicamente em torno de algum "problema"; a terapia é um evento lingüístico que ocorre no que chamamos de conversação terapêutica. Cada encontro terapêutico é uma nova possibilidade de se construir uma narrativa, por meio da qual nós (terapeuta e cliente) passamos a compreender melhor o "problema" pelo qual estamos refletindo.
Minha intenção ao propor a realização do genograma foi de propiciar um contato de Fernando com sua própria história e com a história de sua família. A ênfase não está em produzir mudanças, mas em abrir espaços para a conversação e, por meio desta, possibilitar que o sujeito possa estabelecer relações entre os acontecimentos que tiveram maior repercussão em sua vida e construir talvez novas relações. Ao concluir o genograma, retomou sua autobiografia, podendo então se apropriar melhor da rede de relações que existe em sua família. Ao finalizar seu relato, perguntei-lhe se não havia mais nada a acrescentar, ele respondeu que teria então que "falar" do acidente do pai, mas não tinha vontade! As provas de final de ano foram razoavelmente bem sucedidas, o que deixou Fernando satisfeito, pois foi possível comprovar uma melhora em sua produção escolar.
Entramos em período de férias com a proposta de retomarmos o trabalho em fevereiro de 2006. Entretanto, no período combinado, entrei em contato para marcarmos o reinício da terapia psicopedagógica, mas a resposta é de que ele não voltaria naquele momento. No mês de maio, a mãe de Fernando telefonou pedindo um horário para que ele retomasse o trabalho, já que estava apresentando novamente dificuldades em seu rendimento escolar.
Fui informada de que os pais haviam se separado no final do ano, com a decisão do pai de sair de casa.
Nesse momento, priorizei iniciar o atendimento de Fernando deixando uma entrevista com a mãe para depois. Em nossa primeira sessão deste ano, procurei conduzir a conversa com Fernando no sentido de perceber como ele estava sentindo, o que acontecia, e ele assumiu que não estava indo bem por ser muito preguiçoso. Tentei explorar melhor este rótulo que ele se impunha e propus que tentasse uma mudança de papel: "... de preguiçoso para...", ele pensou e então respondeu: "para vagabundo, esperto..." Perguntei o que significava ser um vagabundo esperto ao que ele explicou: "só estuda na véspera e faz lição 'meia boca', ou... (outra tentativa de explicação) é um cara inteligente que se resolve estudar, vai bem!"(sic).
Consultamos o dicionário, para verificar o significado da palavra vagabundo, que vem de vagabundear; vadiar, vaguear, vagar, errar, sem necessidade. Depois de obter este conhecimento, chegou à conclusão de que o termo não era adequado; pensou então em malandro, ao que fizemos nova consulta ao dicionário: indivíduo dado a abusar da confiança dos outros, ou que não trabalha e vive de expedientes; indivíduo esperto, vivo, astuto, matreiro. Concluiu que "também não era muito bom, mas era melhor!!" Neste momento, estávamos entrando na 3ª etapa do trabalho.
Em nossa segunda sessão de 2006, começou contando sobre o fim de semana, que visitara duas tias maternas. Para que eu pudesse me situar na "geografia familiar", peguei o genograma (que fizéramos no ano anterior) e ele pode me mostrar como estavam as relações, já que as visitas, haviam acontecido somente na companhia do pai e não da mãe. Explicou que o pai mantinha boas relações com esses tios, porque havia sido colega de turma (na faculdade) de um deles.
Fiz a proposta de que fizéssemos uma linha do tempo de suas aprendizagens, o que ele fez na mesma folha do genograma (logo abaixo). Em algumas sessões posteriores, pedi que ele indicasse em sua linha do tempo o momento em que acontecera o "acidente com fogo", ele indicou com a palavra BRIGA, no espaço entre 9 e 10 anos. Perguntei-lhe se lembrava deste dia e Fernando relatou rapidamente o que se lembrava do incidente resultado de uma discussão forte entre os pais, o que resultou em um período de separação de dois meses. Depois disto, seu pai voltara para casa, mas o clima era sempre tenso, com pouco diálogo entre eles.
Na entrevista com a mãe, ela falou sobre o incidente, com muita mágoa, pois agora a separação parecia ser definitiva e com ela as dificuldades financeiras para ela, pois não trabalhava. Estava tentando encontrar alguma atividade remunerada, mas sem êxito até então.
Considero que Fernando se relacione com o conhecimento, sem conseguir olhar de frente para o mesmo, teme provavelmente pelo que pode encontrar, já que há fatos dolorosos e traumáticos em sua história passada. Penso que se apropriar do conhecimento é algo, no mínimo, temerário. Minha atuação foi dar-lhe um espaço para elaborar melhor suas crenças ao entrar em contato com sua própria história, para poder interagir com a história de seus pais e com história do mundo (uma das disciplinas mais difíceis para Fernando). Entramos aqui na 4ª etapa. Depois de mais 3 meses de atendimento, Fernando parou seu atendimento, pois os estudos se intensificaram, mas já apresentava melhores resultados em seu rendimento escolar e conseguia conversar melhor com sua mãe.
A história de Fernando ilustra meu trabalho em um enfoque narrativo que se propõe, além de lidar com os aspectos pedagógicos, a dar voz aos sujeitos. Frisamos que o trabalho psicopedagógico é construído em torno da possibilidade de fortalecer o pertencimento do sujeito em seus contextos de vida (familiar, amigos). O lugar do terapeuta é de acolhimento e respeito a cada história com que se depara e sem conotar os comportamentos de nossos clientes, favorecendo assim as conversações por meio das quais os mitos e crenças possam ser desconstruídos e dar lugar a construções mais objetivas, as quais lhes possibilitam interagir com as dificuldades, acreditando em suas possibilidades!
REFERÊNCIAS
1. Anderson H, Goolishian H. O cliente é o especialista. In: A terapia como construção social. Porto Alegre:Artes Médicas;1998. p.51-65.
2. Brun G, Rapizo R. Reflexões sobre o ato de perguntar. Mimeo;1989.
3. Senge P (org.). Escolas que aprendem. Porto Alegre:Artes Médicas;2005.
4. Brun G. O lugar do terapeuta, sua visão de mundo e sua clínica: espaços revisitados. In: Perspectiva Sistêmica - Publicação do Instituto de Terapia da Família RJ. Fevereiro 2004;Ano XIII:nº 23.
5. Tomm K. Entrevista Interventiva: Parte III. Mimeo;1988.
6. Andersen T. A linguagem não é inocente. In: Perspectiva Sistêmica - Publicação do Instituto de Terapia de Família RJ. Fevereiro 2004;Ano XIII nº 23.
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